Alma Maria Rosé nasceu em Viena, em 1906, como a segunda criança de uma família, literalmente, da aristocracia musical. O seu pai, Arnold Rosé, nascido Rosenblum, ele próprio judeu romeno, foi maestro da Ópera de Viena e da Filarmónica de Viena, bem como o líder do indiscutivelmente melhor quarteto de cordas da época, o Quarteto Rosé. A sua mãe era Justine Mahler, irmã do compositor Gustav Mahler. Tanto Arnold como Justine descendiam de famílias judias, mas tinham sido batizados na fé cristã. Arnold tornara-se protestante e Justine católica.
Gustav Mahler (à esquerda) e Arnold Rosé, s/d. (Fonte: https://www.danieladammaltz.com/classicalcake/alma-rose-orchestrating-survival)
Alma foi batizada com o nome da mulher do compositor Gustav Mahler. Outra irmã de Mahler, Emma, tinha casado anteriormente com o irmão mais velho de Arnold Rosé, Eduard, um violoncelista, cuja vida acabou mais tarde no campo de concentração de Theresienstadt (Terezín), na República Checa, depois de ter sido deportado para lá devido à sua origem judaica. Na família Rosé, era normal ter alguns membros da Filarmónica a tocar música de câmara em sua casa aos domingos. De facto, através da sua posição de destaque nos círculos musicais vienenses, a família Rosé teve contacto com muitos músicos de renome.
Alma Rosé, com 8 anos, a tocar violino, 1914 (Fonte: https://mahlerfoundation.org/mahler/familie/generation-7b/1-alma-maria-rose-1906-1944)
A partir dos seis anos de idade, Alma Rosé teve aulas de violino com o pai e provavelmente estudou na Academia de Música de Viena desde 1921 sob a orientação de Otakar Ševčik (1852-1934). O seu primeiro concerto público teve lugar na Kurhaus em Bad Ischl, em 29 de Junho de 1922, onde atuou com o seu pai e o seu irmão, Alfred (11 de Dezembro de 1902 - 1995), maestro, pianista e compositor.
Alfred Rosé (irmão), Alma Maria Rosé (1906-1944) e a mãe Justine (Ernestine) Rose-Mahler (1868-1938), 1915 (Fonte: https://mahlerfoundation.org/mahler/familie/generation-7b/1-alma-maria-rose-1906-1944)
Alma Rosé foi criada sob regras e obediência, não só por causa do seu pai, homem autoritário e rigoroso, mas muito por causa da sua mãe também. Justine tinha dirigido a casa do irmão durante anos e continuava a adiar o casamento com Rosé porque não queria abdicar do controlo sobre a vida de Gustav. Finalmente casaram um dia depois de Mahler ter casado com Alma Schindler, por insistência de Justine. A disciplina de ferro era tudo o que Alma conhecia. Horas intermináveis de treino com o pai desde muito cedo, sempre à sombra do seu irmão mais velho Alfred, estreado no Goldner Saal do Musikverein aos 10 anos, com grandes expectativas – pelo que a excelência estava implícita e tudo menos que isso era considerado um fracasso.
Alma Rosé, em 1924, Programa da estreia oficial de Alma Rosé, em 1926 e fotografia de Alma Rosé em 1926 (Fonte: https://mahlerfoundation.org/mahler/familie/generation-7b/1-alma-maria-rose-1906-1944)
A sua estreia efetiva teve lugar em 16 de dezembro de 1926, no Großer Musikvereinsaal, em Viena. O programa incluiu o Romance em Fá Maior de Ludwig van Beethoven, o Concerto Duplo em Dó menor de Johann Sebastian Bach, onde o seu pai tocou a segunda parte a solo, e o Concerto de Violino em Dó Maior, de Tchaikovsky.
Alma Rosé com o pai, Arnold, em 1927 e com o marido Vasa Prihoda, em 1930 (Fonte: https://mahlerfoundation.org/mahler/familie/generation-7b/1-alma-maria-rose-1906-1944)
Em 1927, Alma Rosé conheceu o violinista checo Váša Příhoda (1900-1960). Arnold Rosé gostou da ideia da sua filha casar com um famoso virtuoso do violino, pelo que praticamente arranjou o casamento de Alma com Váša Príhoda em 1930. O casal vivia em Záryby, uma cidade no Elba, perto de Praga, e fez tournées conjuntas de concertos na Polónia, França, Itália e Alemanha. Nessa altura, Alma já tocava um violino Guadagnini de 1757 que herdara do seu pai. No entanto, a ligação não demorou muito tempo a revelar-se infrutífera e acabou realmente muito antes de 1936, quando o divórcio foi finalizado.
Justine (Ernestine) Rosé-Mahler (1868-1938), Alma Maria Rosé (1906-1944), Arnold Josef Rosé (1863-1946) e Vasa Prihoda (1900-1960), em 1933 (Fonte: https://mahlerfoundation.org/mahler/familie/generation-7b/1-alma-maria-rose-1906-1944)
A forma de Alma Rosé lutar pelo seu próprio lugar ao sol, à sombra do seu irmão mais velho Alfred, e a sua resposta ao fardo do nome e da tradição por detrás do mesmo foi formar, em 1932, antes de se separar do marido, a sua orquestra de câmara, a Wiener Walzermädeln (As Raparigas da Valsa de Viena), composta inteiramente por mulheres, com a qual percorreu a Europa. A ''Walzermädeln'' seguiu a tradição das populares bandas de dança feminina que surgiram, especialmente desde o final do século XVIII, em salões de dança e casas de café, mas que também tocavam repertório mais sofisticado (como a música orquestral de Franz Schubert e Anton Dvořák), a par de valsas e números populares de operetta. A dimensão da orquestra variou entre nove a catorze membros.
Alma Rosé e a orquestra Wienser Walzermadeln, anos 30 (Fonte: https://mahlerfoundation.org/mahler/familie/generation-7b/1-alma-maria-rose-1906-1944)
O núcleo parece ter incluído dois pianos, harpa, violoncelo e violino e, numa fase posterior, viola, contrabaixo e uma cantora. Como maestrina, Alma Rosé liderava a orquestra em violino. Karoline Rostal, membro do conjunto até ao seu casamento com o violinista Max Rostal, recorda que Alma Rosé exigia a maior perfeição possível do seu conjunto quer ao nível musical, quer quanto aos trajes selecionados e até mesmo a coreografia cuidadosamente planeada das atuações. De facto, ela era muito rigorosa com as seus músicas, com elevados padrões, exigências e disciplina, e ficava muito frustrada e furiosa quando as coisas corriam de forma diferente do planeado - uma característica que persistiu até ao fim da sua vida. As raparigas tinham um enorme respeito por ela por causa da sua excelência, mas também tinham medo de a provocar com erros. As digressões de concertos levaram a orquestra a França, Suíça, Holanda, Dinamarca, Suécia, Polónia, Hungria e Checoslováquia.
Alma Rosé (ao centro) e a orquestra "Walzermädeln" (Fonte: https://www.danieladammaltz.com/classicalcake/alma-rose-orchestrating-survival)
Após a dissolução do seu casamento com Příhoda em 1935 e o divórcio oficial que se seguiu, em outubro de 1936, Alma Rosé instalou-se em Viena, onde continuou a viver uma vida glamorosa.
Alma Rosé, s/d (Fonte: https://mahlerfoundation.org/mahler/familie/generation-7b/1-alma-maria-rose-1906-1944)
A ocupação da Áustria pelas tropas alemãs (Anschluss), em 1938, levou à proibição imediata de atuações dos músicos de origem judia e a "Walzermädeln" foi dissolvida pela Câmara da Cultura do Reich ("Reichskulturkammer"). Arnold Rosé foi despedido da Filarmónica de Viena, sem direito a pensão, algo que ele não conseguia compreender. Não havia lugar para ele devido à sua origem judaica, embora ele se tivesse convertido ao cristianismo décadas antes, assim como a sua esposa, e ambos os filhos foram batizados como protestantes enquanto bebés. Justine morreu mais tarde nesse ano, em 1938, e a luta frenética para emigrar começou, uma vez que os Rosés, como judeus, foram despojados de todos os direitos. Foi apenas graças a uma coleta para Arnold Rosé iniciada por Carl Flesch que Alma e o pai conseguiram os meios financeiros necessárias para fugir para Londres, onde chegaram por rotas separadas em março e maio de 1939, respetivamente, via Berlim e Amesterdão, um acontecimento que recebeu cobertura da imprensa. O irmão de Alma, Alfred, já tinha emigrado com a sua mulher para os EUA, em setembro de 1938.
Notícia sobre Arnold e Alma Rosé, do ano de 1939, que então viviam em Londres (Fonte: https://mahlerfoundation.org/mahler/familie/generation-7b/1-alma-maria-rose-1906-1944)
Em Londres, a situação financeira de Alma Rosé e do seu pai continuou a ser desastrosa, uma vez que os requerentes de asilo não podiam atuar publicamente. Arnold Rosé ainda pôde organizar alguns concertos com o seu restabelecido Quarteto Rosé, no qual Alma tocava segundo violino. Assim, quando lhe foi oferecido um contrato para atuar no Grand Hotel Central em Haia, ela voou para os Países Baixos, em 26 de novembro de 1939.
Programa do Grand Hotel Central, com Alma Rosé e a Wiener Walzermadel, 1939 (Fonte: https://mahlerfoundation.org/mahler/familie/generation-7b/1-alma-maria-rose-1906-1944)
Confiando na neutralidade dos holandeses, Alma deixou que a sua licença de 5 meses que lhe permitia está fora da Inglaterra expirasse. Tocou concertos para a Rádio Hilversum, entre outros, e fez pequenas digressões de concertos pelo país. Quando a Alemanha invadiu os Países Baixos, o seu regresso a Inglaterra já não era possível, a partir de janeiro de 1941, ganhava a vida participando em numerosos concertos ilegais que se realizavam em casas particulares, em oposição à política cultural oficial.
Alma Rosé, 1941 (Fonte: https://tarisio.com/cozio-archive/cozio-carteggio/historic-women-performers-alma-rose-part-2)
Carta de Alma Maria Rosé para o seu irmão Alfred Eduard Rosé, em papel de carta do Grand Hotel Central, datada de 18 de dezembro de 1939 e carta datada de 1940, também para o seu irmão, ainda proveniente da Holanda (Fonte: https://mahlerfoundation.org/mahler/familie/generation-7b/1-alma-maria-rose-1906-1944)
Os parceiros de Alma na música de câmara incluíam o compositor e pianista Johan Wagenaar, Rutger Schoute, Paul Frenkel, James H. Simon, Johannes Röntgen e o compositor e pianista húngaro Geza Frid. Para além disso, tocou num quarteto de cordas amador com o médico Leonard Berend Willem Jongkees, o seu pai Willem Jongkees e o fisiologista J. Jaap Groen. Leonard Jongkees foi o último homem na sua vida, um otorrinolaringologista holandês que conheceu no Verão de 1941.
Cartões de registo de identidade de Alma Rosé (o segundo com o sobrenome do 2.º marido) no Judenrat (Conselho Judaico) de Amesterdão, 1941-42 (Fonte: https://collections.arolsen-archives.org/)
Os seus esforços para emigrar para os EUA foram vítimas da regulamentação das quotas e um plano para fugir para Cuba foi rejeitado. A 4 de março de 1942, Alma contraiu um falso casamento com August van Leeuwen Boomkamp, um engenheiro holandês, que apenas a salvou de uma detenção inicial, em agosto de 1942, por intervenção imediata da sua amiga Marie Anne Tellegen, pertencente a uma importante família holandesa e membro da resistência.
Excerto da lista do transporte n.º 57, de 18 de julho de 1943, de Drancy para Auschwitz, onde Alma Rosé surge com o nome de Obna Vanleuween (Fonte: https://collections.arolsen-archives.org/)
Recusando-se a viver escondida, pois simplesmente não suportava viver sem fazer música, optou por um plano de fuga, em dezembro de 1942, que a deveria levar para a Suíça, através da França. Foi detida pela Gestapo de Dijon, a 19 de dezembro de 1942, juntamente com o jovem judeu que viajava com ela, ambos com documentos falsos e, muito provavelmente, traída por um agente que se tinha infiltrado na rede de fuga. A 12 de janeiro de 1943, Alma foi enviada para o campo de trânsito de Drancy, onde recebeu o número 2133, como se pode ver na lista de deportação, e alguns meses mais tarde, no Verão de 1943, foi deportada para Auschwitz. A lista do transporte nº 57, de 18 de julho de 1943, com destino a Auschwitz, menciona Alma com um nome errado, Obna Vanleuween (má interpretação do nome do segundo marido) e uma data de nascimento errada, 8 de novembro de 1906, em vez de 3 de novembro, tendo Alma sido registada com o número 916.
O transporte n.º 57, com 1000 judeus, chegou ao seu destino 3 dias e duas noites depois da sua partida, a 20 de julho de 1943. Após a chegada, 369 homens foram selecionados para trabalhar, sendo tatuados com os números 130834 a 130466 e 191 mulheres receberam os números 50204 a 50394. Alma Rosé foi tatuada com o número 50381. Os restantes 460 deportados foram imediatamente assassinados nas câmaras de gás. Deste transporte, apenas 30 homens e 22 mulheres estavam ainda vivos em 1945. Alma Rosé foi destacada para o infame Bloco 10, onde o Dr. Clauberg fazia as suas experiências de esterilização, e pouco tempo depois, foi reconhecida por uma das reclusas, Ima van Esso, como a famosa violinista vienense Alma Rosé. A responsável do Bloco conseguiu arranjar-lhe um violino e Alma passou a tocar para as outras mulheres todas as noites. A notícia chegou rapidamente aos responsáveis do Campo e logo foi atribuído a Alma o papel de líder do conjunto musical feminino de Birkenau, criado pessoalmente por Maria Mandel, que estava nada menos do que encantada por ter um tal acréscimo ao seu projeto de estimação.
Após a sua transferência e a nomeação para o cargo de líder do conjunto e de acordo com a hierarquia do campo, Alma recebeu o posto de kapo, o que, no papel, a colocou ao lado de todo o tipo de oportunistas e criminosos que ocupavam esse posto em todo o campo e eram conhecidos pela crueldade que os colocavam ao lado das SS. Escusado será dizer que Alma não correspondia a este tipo de categoria. Ela utilizou a posição que lhe permitiu ter uma pequena sala no Bloco 12 para se retirar para o seu mundo interior e lutar, à sua maneira, contra o horror para o qual foi atirada. Estava também ligeiramente melhor vestida do que uma prisioneira normal.
A decisão de Maria Mandel de nomear Alma como chefe de orquestra provocou um antagonismo agitado em relação a Alma entre os membros polacos, que apoiavam Zofia Czaykowska. No entanto, tudo se acalmou rapidamente e Alma pôde lidar com o que encontrou na sua transferência, que não foi grande coisa - um grupo de raparigas e mulheres que tocavam miseravelmente em instrumentos que nunca estariam juntos em nenhuma orquestra. Alma viu-se confrontada com a tarefa impossível de fazer uma orquestra a partir de um grupo assim. Quase todas as participantes desta orquestra eram amadoras e tinham pouca experiência. Para um músico profissional de alto nível isso significava muita frustração, somada à já impensável situação de estar num campo de extermínio como nenhum outro, rodeado pela morte a cada minuto de cada dia.
No entanto, Alma tinha a experiência de ter regido a orquestra "Walzermädeln", pelo que conseguiu melhorar o padrão do conjunto num curto espaço de tempo. Ela escreveu arranjos especiais para este tão improvável conjunto musical e pediu às copistas que escrevessem as peças para os instrumentos individuais. Em outubro de 1943, a orquestra era composta por violinos, guitarras, bandolins, alguns instrumentos de sopro, dois acordeões, um violoncelo e um contrabaixo. O repertório era constituído por mais de 200 peças, juntamente com marchas, operetas numéricas e arranjos de árias líricas e de obras clássicas de Mozart e Brahms. Graças ao talento de Alma Rosé, ao seu espírito de liderança (Alma Rosé era muito exigente, apenas tolerava a perfeição, muitas vezes punia as músicas, por exemplo, colocava-as a lavar o chão, no entanto, era uma boa forma de assegurar a existência da Orquestra, visto que as músicas eram obrigadas o tocar em condições), à persistência do grupo e à intensidade dos ensaios, a Orquestra conseguiu alcançar um nível de performance relativamente elevado. O grupo tinha uma constituição muito fora do comum, apenas para se conseguir salvar o máximo número de mulheres possíveis. Para além de comandar esta Orquestra também atuava sozinha com o violino. As suas músicas e da Orquestra eram tocadas não só para entreter os SS, mas também para marcar o ritmo das marchas dos prisioneiros que iam trabalhar, e apenas por inevitabilidade, eram também ouvidas por aqueles que se dirigiam às camaras de gás.
Em conjunto, os ensaios e concertos duraram muitas vezes até doze horas por dia. Sempre convencida de que uma boa atuação protegia as suas músicas da morte nas câmaras de gás, Alma Rosé (tanto quanto sabemos pelas testemunhas) liderou, de facto, o ensemble com grande severidade. No seu livro "Das Mädchenorchester in Auschwitz", Fania Fénelon, que era cantora na orquestra, chega mesmo a descrever Alma como uma mulher mecânica, egocêntrica, com talentos de condução duvidosos e que fazia tudo para agradar às SS, um retrato unanimemente contraditado por outras sobreviventes, como a violoncelista Anita Lasker-Wallfisch, Helena Dunicz-Niwinska e Violette Jacquet que descreveram Alma como uma personalidade carismática que foi tratada mesmo pelas SS com respeito. Após a publicação do livro, infelizmente um êxito editorial transposto para o cinema com o título “Playing for Time”, as outras sobreviventes cortaram todo o contacto com a sua antiga colega, profundamente ofendidas com os factos distorcidos. Alma, de facto, conseguiu obter pequenos benefícios para as suas músicas: diferindo do resto do campo, o "Musikblock" tinha um forno e uma cama individual para cada mulher, o que era um privilégio raro considerando a superlotação permanente no campo das mulheres. As músicas podiam usar os lavabos regularmente e mudar de roupa com mais frequência. Alma levava preferencialmente mulheres judias para a orquestra, salvando assim muitas vezes as suas vidas como resultado. No intenso trabalho orquestral, ela deu a estas mulheres um grão essencial de dignidade humana no meio do horror diário. Enquanto todo o sistema nos campos de concentração visava isolar os prisioneiros, estas mulheres conseguiram-se estabelecer quase como uma comunidade, apesar das diferenças linguísticas e culturais. Numa entrevista, Hélène Scheps sempre agradeceu a Alma Rosé afirmando que "por vezes conseguia esquecer que estava no inferno, graças à concentração que ela exigia, para que a música se tornasse o nosso único mestre". Por vezes, Alma tocava concertos só para as suas colegas prisioneiras.
A Alma não era uma pessoa descontraída - isso era verdade. E quando se tratava de música, não havia compromisso. Ela insistia em que todas as mulheres se concentrassem naquilo que tocavam e ficava furiosa quando não era o caso. Ela também punia ocasionalmente as mulheres por não tocarem bem. As razões para a dureza e disciplina de Alma são múltiplas. Uma quantidade significativa está no seu passado, na forma como cresceu e na herança em que nasceu. Ela era muito dedicada à sua criação musical, tudo tinha de estar certo. Ela estava simplesmente a dar-se totalmente à música e não esperava menos daquelas que tocavam com ela. Arnold Rosé, o seu pai, afirmou que ela estava "possuída pelo espírito de Mahler" e, apesar de ter apenas cinco anos quando o seu tio morreu, esta afirmação não estava muito longe da verdade.
Ela não pediu mais do que aquilo que estava a dar - o seu empenho era total e esperava o mesmo das suas colegas músicas. Tal atitude não lhe granjeou muita popularidade, como também não granjeou a popularidade do seu tio. Tal como ele, Alma trabalhava de acordo com padrões muito elevados e manteve-se fiel a eles, independentemente da situação ou das circunstâncias, em qualquer altura, em qualquer lugar, nunca se afastando. Ambos deviam isso aos resultados que pretendiam alcançar, mas também - e este é um detalhe muito importante - a si próprios. Este é um conceito nem sempre fácil de compreender, particularmente no contexto de uma situação tão extrema como a produção musical num campo de extermínio. Para Alma Rosé, a música não era apenas uma profissão; era um modo de vida. Ela foi despojada de muitas coisas em Auschwitz, mas ninguém a poderia ter despojado da música e nela procurou o refúgio do horror que a rodeava. Ela era suficientemente sensata para perceber precisamente onde estava e que não havia fuga possível de um lugar assim. Sabia também que ceder ao medo e ao desespero significava morrer antes da morte e um episódio contado por Anita Lasker-Wallfisch ilustra a atitude de Alma em relação ao que se passava à sua volta: «Ela [Alma] estava muito zangada com uma miúda que chorava, com apenas 16 anos e viu a sua tia passar para a câmara de gás e chorou. E ela [Alma] deu-lhe uma bofetada e disse: "Nós não choramos, aqui nós não choramos! Aqui, graças a ela, temos de ser mais fortes". Sim, não se pode chorar, isso é um luxo. Ela reduziu a nossa visão ao que estava a acontecer ali, naquele Bloco, temos de tocar bem aquela estúpida peça.»
Tal como em tudo o resto, Alma exigiu o empenho total e teve como consequência o facto de as mulheres terem pouco tempo para se dedicarem às chaminés de fumo lá fora - estavam a fazer o seu melhor para acertarem na nota certa. Eventualmente, este esforço, independentemente da insistência e do empurrão de Alma, ajudou as mulheres a perceberem que não estavam realmente a tocar para os nazis, mesmo quando estes, por acaso, invadiam o bloco musical e exigiam que fosse tocada uma determinada peça de música, mas para si próprios, para a sua própria sanidade e para a esperança de que talvez sobrevivessem.
Com o aumento do repertório, a procura de copistas também foi aumentando e Alma fez tudo para levar o maior número possível de mulheres para a orquestra, sabendo o que isso significava para todas elas. Por muito mal que uma mulher tocasse, ela nunca era expulsa. Foi-lhe dada outra tarefa dentro da banda, mas nunca foi expulsa. Alma também fez tudo o que pôde, para que as mulheres não fossem gaseadas por estarem doentes e Violette Jacquet, mais tarde Silberstein, uma violinista, lembra-se de Alma ter mentido a uma SS que era uma das suas melhores violinistas, para que não fosse levada por estar doente de tifo.
Infelizmente, por alguns dos privilégios que tinham dentro do campo, os elementos da orquestra feminina, e em especial Alma, eram alvo de comentários sarcásticos e maldosos. Eram "as senhoras da orquestra" porque tinham uma espécie de uniforme para "concertos oficiais" e o facto de estarem dispensadas do trabalho escravo era um motivo para as desprezar, especialmente quando tinham de tocar em frente de uma plateia que integrava a SS. Estes comentários causaram o nascimento de muitos mitos sobre a orquestra, nomeadamente que as mulheres eram insensíveis ao que se passava à sua volta e que a orquestra tocava nas seleções e execuções. No caso dos transportes e das seleções, especialmente durante as chegadas dos comboios com dezenas de milhares de judeus húngaros em 1944, uma coisa é certa: a música podia ser ouvida a partir do ponto de seleção. No entanto - e aqui chegamos a um pormenor extremamente importante - a orquestra, masculina ou feminina, nunca esteve diretamente na rampa e nunca foi tocada para acompanhar propositadamente as chegadas dos transportes ou o processo de seleção.
Alma Rosé fez o melhor que pôde, naquelas circunstâncias terríveis. Os transportes e gaseamentos cada vez mais frequentes, especialmente o extermínio total do campo de concentração de Theresienstadt (Terezín), dos judeus do "campo familiar" e o gaseamento interminável dos judeus húngaros, fizeram-na ir mais fundo na sua música. Estes acontecimentos atingiram-na muito duramente e ela retirou-se completamente para o seu mundo interior, isolando-se na excelência da sua música, na qual procurava os meios de sobrevivência. Apegou-se aos membros da sua orquestra, um núcleo que contava num ponto entre quarenta e cinquenta mulheres, e elogiou-as, quando, na sua opinião, elas o mereciam. O seu maior elogio foi dizer-lhes que o que tinham acabado de tocar teria sido suficientemente bom para o seu pai. Helena Spitzer Tischauer, conhecida no campo como Zippy, afirmou: «Alma disse uma vez: "Nunca mais vou voltar ao meu Wiener Mädchen (ou lá como ela o chamou), vou levar-vos, meninas, por toda a Europa e vamos tocar!” Sabe o que isso significava para nós?» No entanto, embora Alma nunca tenha realmente abandonado a esperança de sair do campo, isso nunca chegaria a acontecer. Na noite de 2 de abril, Alma participou numa "festa de aniversário" para Elsa Schmidt, a Kapo do departamento de vestuário, onde provavelmente tocou pela última vez, da qual regressou doente. Sentia dores agudas e tonturas, dores no peito, calafrios e náuseas. Na manhã do dia seguinte, foi levada para o bloco hospitalar, onde se suspeitava de meningite.
Ordem do Dr. Mengele para a realização de uma punção lombar a Alma Rosé por suspeita de meningite ou pneumonia, pelo Instituto de Higiene das SS, datada de 4 de abril de 1944 (Fonte: Arquivo do Museu Estatal de Auschwitz-Birkenau)
No dia 4 de Abril, foi mesmo realizada uma punção lombar por suspeita de meningite ou pneumonia e receio de uma epidemia no campo, conforme documento preservado no Arquivo do Museu de Auschwitz-Birkenau, mas o laboratório do Instituto de Higiene das SS não confirma o diagnóstico. Nenhum dos tratamentos administrados no hospital foi eficaz e, como resultado, ela morreu na noite de 4 de abril de 1944, por causas indeterminadas. A melhor amiga de Alma no campo, a Dr.ª Margita Svalbová, conhecida como "Manci" ou "Manca", esteve com ela até ao fim. O seu súbito falecimento deu origem a uma série de "teorias" no campo sobre a sua morte. Para alguns, a maestrina tinha sofrido uma intoxicação alimentar ou tinha sido envenenada deliberadamente. Para outros, ela própria se teria envenenado com metanol ou depois de comer comida enlatada estragada na mencionada "festa". Os investigadores Newman e Kirtley, autores da biografia «Alma Rosé: Vienna to Auschwitz», comparando os vários relatos e analisando os sintomas, deduzem que poderá ter sido botulismo, na sequência de comer comida estragada.
Após a morte de Alma Rosé, Marie Mandel permitiu que os membros da orquestra fossem à enfermaria prestar os seus últimos respeitos, o que por si só foi um gesto sem precedentes no campo. O tratamento dos restos mortais foi também excecional, como testemunhou Zofia Cykowiak: "Depositaram-na fora do bloco hospitalar, numa fila de bancos cobertos com um lençol branco, tal como o seu corpo. Várias pequenas manchas negras e azuis eram visíveis no seu rosto e nas suas mãos. Alguém colocou um pequeno ramo verde no seu sudário. Um tal 'funeral' foi um caso inédito num campo de concentração". O tratamento excecional dado aos restos mortais de Alma Rosé foi, sem dúvida, mais uma manifestação de estima pela violinista dada pela administração do campo. A morte de Alma foi um enorme golpe para a orquestra, não só porque nenhuma outra pessoa conseguia acompanhar os padrões que ela tinha estabelecido, mas também devido ao respeito que lhe tinha sido dado. Ela foi sucedida por Sonia Vinogradova, mas os resultados ficaram muito longe do que Alma tinha conseguido obter e, em breve, a orquestra seria desmantelada.
História do violino Guadagnini "Alma Rosé", 1757
Alma Rosé e o seu Guadagnini, de 1757 (Fonte: https://www.danieladammaltz.com/classicalcake/alma-rose-orchestrating-survival#op7transcript)
Arnold Rosé comprou este precioso violino numa das suas viagens à Holanda em 1924 e ofereceu-o, depois, à sua filha Alma Rosé. Quando Alma foi presa em agosto de 1942 e, embora a rápida intervenção de Marie Tellegen a tenha tirado da prisão em poucas horas, a experiência parece tê-la feito perceber a gravidade da sua situação. Assim, em 24 de novembro de 1942, ela escreveu um breve testamento: “Eu instruo que o meu marido não herdará nenhum dos meus bens. Nomeio a Sr.ª Marie Anne Tellegen em Utrecht (após a sua morte ou falta, o Doutor Leonard Barend Willem Jongkees) para organizar o meu funeral e dispor dos meus bens”. Recorde-se que Jongkees foi o último homem da sua vida, um otorrinolaringologista holandês que conheceu no Verão de 1941. Assim, a 13 de dezembro de 1942, Alma deixou o seu amado Guadagnini aos cuidados de Jongkee e tentou fugir para a Suíça. A família só soube da sua morte após o final da guerra. O irmão, Alfred, foi informado a 22 de junho de 1945, tendo sido ele a comunicar ao pai o terrível destino da irmã. Arnold Rosé jamais recuperará desta notícia, tendo falecido em 1946. No entanto, em agosto de 1945, Arnold recebe, ainda, uma carta de Marie Tellegen, com endereço de Utrecht. Telleden informa-o que o violino de Alma e outros pertences pessoais, incluindo o anel com um diamante solitário que lhe fora oferecido pelo primeiro marido, assim como um relógio e um colar de pérolas, foram entregues a uma sua amiga em Drancy e ser-lhe-iam devolvidos.
O Guadagnini “Alma Rosé”, de 1757
(Fonte: https://tarisio.com/cozio-archive/cozio-carteggio/historic-women-performers-alma-rose-part-2/)
Em Londres, Arnold recebe o valioso violino Guadagnini da filha e não consegue ficar com ele. Pouco tempo depois vende-o a Hugh Gough, um hoteleiro rico, que tinha tido aulas de violino com Arnold em Inglaterra. Gough vendeu o violino a Felix Eyle (1899-1988), que tinha sido colega de Alma na Academia de Música de Viena e era, também ele, ex-aluno de Arnold Rosé. Eyle adquiriu o instrumento em 1947, pouco antes de se tornar um concertista da Ópera Metropolitana, onde tocou até se reformar em 1970. "O som é tão celestial, tão lindo e poderoso, que passa por tudo", disse Eyle certa vez sobre o violino". Foi Eyle que deu o nome “Alma Rosé” ao violino. Após a sua morte, o seu filho Nicholas decidiu vender o instrumento em 2001. O violino pertence atualmente a um proprietário privado.
Texto adaptado das consultas e leituras a seguir identificadas, não tendo sido possível um trabalho rigoroso em termos de citações. Pesquisa e conceção finais: Filipa Pinheiro, Gonçalo Azevedo, José Lourenço Pacheco (9.º C) e Inês Madureira (9.º D)
Bibliografia: KIRTLEY, Karen e NEWMAN, Richard – Alma Rosé: Vienna to Auschwitz, Hal Leonard Corporation, 2003. LACHENDRO, Jacek – “The orchestras in KL Auschwitz”, in Auschwitz Studies 27. Auschwitz-Birkenau State Museum in Oswiecim, 2015, p. 77-109.