História do gueto e campo de concentração de Terezín ou Theresienstadt
Projeto original de Terezín (1790): no lado esquerdo, o Forte Principal; no lado direito, a Pequena Fortaleza (Fonte: http://insiderpraga.com.br/terezin-como-chegar/)
A fortaleza de Terezín (Theresienstadt), próxima de Praga, na Checoslováquia, foi construída entre 1780 e 1790, pelo Imperador José II em honra da sua mãe Maria Theresa. Em 1782, recebeu o estatuto de cidade, cuja vida estava intimamente ligada à guarnição militar, podendo acomodar cerca de 6000 soldados. A pequena fortaleza, que faz parte do sistema de fortificação de Terezín, tornou-se famosa sob a monarquia dos Habsburgos como prisão e local de punição para prisioneiros políticos e militares.
Postal de Terezín, 1823
(Fonte: https://collections.vhec.org/Detail/objects/1925)
De 1914 a 1918, o forte teve um de seus mais famosos prisioneiros, Gavrilo Princip, o autor do assassinato do Arquiduque Franz Ferdinand (Francisco Fernando) da Áustria e a sua esposa em 28 de junho de 1914, acontecimento que deu início à Primeira Guerra Mundial. Princip morreu na cela número 1, de tuberculose, em 28/04/18. A 10 de junho de 1940, a Gestapo tomou o controlo de Theresienstadt e transformou-a em prisão. Rodeada por altos bastiões, com as suas muralhas, o alinhamento geométrico das suas ruas e casernas, a praça central onde fica a igreja, toda essa disposição racional de fortaleza possibilitou, facilmente, a sua transformação num gueto isolado, num “campo para casos especiais”. Terezin era, em 1941, um município com 3498 habitantes que foram evacuados por Heydrich para a implantação do gueto.
Mapa de Terezín do período do gueto, 1942. Pode-se ver a legendagem das ruas usando uma combinação de letras e números, bem como os nomes das ruas do período do embelezamento de Terezín antes da visita de uma delegação do Comité Internacional da Cruz Vermelha.(Fonte: https://www.holocaust.cz/)
Mapa do Gueto de Terezín, com os nomes das ruas em alemão (Fonte: http://svetanyc.com/2016/02/terezin/)
Por sugestão de Reinhard Heydrich e Eichmann, Theresienstadt foi transformada no modelo de gueto que servia de campo de trânsito antes da transferência dos seus ocupantes para os campos de extermínio. O papel de Theresienstadt, entre 1941 e 1945, estava intimamente relacionado com os planos dos nacional-socialistas de que "no curso da implementação prática da solução final (da questão judaica)" – segundo a redação da ata da Conferência de Wannsee (20 de janeiro de 1942) – "a Europa será varrida do Oeste para o Leste". Além do território do Reich, o Protetorado da Boêmia e da Morávia recebeu alta prioridade nesta Conferência, iniciando-se as deportações por estes dois territórios. A exceção, prevista em Wansee, seria para os judeus com mais de 65 anos, dos que tivessem sido seriamente feridos na Grande Guerra ou recebido medalhas de Guerra de 1.ª Classe. Estes iriam para o campo de Theresienstadt, até a guerra permitir futuras evacuações. Para além de campo de trânsito dos judeus do Protetorado da Boémia Morávia, Terezín seria, assim, moradia para os velhos, entre eles os judeus heróis de guerra pela Alemanha. O Reich teria, pois, um cartão de visita a exibir para o Ocidente. Os primeiros deportados judeus de Praga chegaram em 24 de novembro de 1941 como uma unidade de trabalho para fazer reconstruções e remodelações no espaço e o primeiro transporte, proveniente de Riga, chegou a 9 de janeiro de 1942. Campo de concentração ou Gueto? Se o papel de Theresienstadt nas resoluções nacional-socialistas era claramente definido como um campo coletivo e de trânsito, isso não se aplicava ao nome dado ao mundo exterior. A denominação «gueto» foi sempre a mais adotada, externa e internamente, quer pelos nazis quer pelas vítimas, como mais uma forma cosmética de esconder ou aceitar a realidade.
Convocatória de Karel Fischer, para um transporte Ak para Terezín, 28 de novembro de 1941. Em 24 de novembro de 1941, o primeiro transporte de 342 jovens partiu para Terezín. Abreviação Ak indica Aufbaukommando (comando ou equipa de construção). A tarefa da unidade de trabalho era fazer modificações nos quartéis e outros edifícios de Terezín antes da chegada de outros transportes. (Fonte: http://collections.jewishmuseum.cz/)
Aviso de deportação e instruções para o embarque do Transport Ak I, de 28 de novembro de 1941 e pátio do Pavilhão dos Sudetas, em Terezín, onde o Aufbaukommando foi alojado (Fonte: http://pinkas.jewishmuseum.cz/cesty-bez-navratu/ghetto-terezin/komando-vystavby)
Trajeto dos deportados judeus desde a estação de Bohušovice até Terezín (1942). Os judeus deportados para Terezín recebiam uma convocatória, que indicava que só podiam levar bagagem com peso até 50 kg. Até à conclusão da extensão da via férrea até Terezín, em junho de 1943, os comboios chegavam à estação de Bohušovice e os prisioneiros eram forçados a caminhar 2,5 km até ao gueto. A caminhada era extenuante e ocorria independentemente do clima. (Fonte: http://collections.jewishmuseum.cz/)
Com o objetivo de purificar o Protetorado, Eichmann foi tornando as medidas antissemitas cada vez mais repressivas. Pouco depois da obrigação do uso da estrela amarela no vestuário, são os próprios líderes dos Conselhos Judaicos que entregam aos nazis, a 6 de novembro de 1941, um projeto de “guetos industriais” para oferecer às fábricas mão-de-obra mais barata. Não é difícil imaginar o objetivo dos líderes judeus: a sobrevivência. Assim, em julho de 1941, as autoridades nazis transferiram a administração do gueto ao Conselho Judaico (Judenrat), para se dedicar apenas à organização do "transporte", entregando a este conselho a terrível tarefa de organizar as listas de deportação. Como imagem para o exterior, Theresienstadt estava, assim, sob autogestão judaica, ou seja, sob a liderança de um conselho judaico de anciãos. Foram três os anciões judeus que desempenharam este dramático e polémico papel: Jakob Edelstein, de 1941 a janeiro de 1943, depois Paul Eppstein até ao seu assassinato na Pequena Fortaleza em setembro de 1944 por eventualmente ter manipulado as listas de deportação para salvar algumas pessoas e, finalmente, até à tomada do governo do gueto pela Cruz Vermelha em 5 de maio de 1945, Benjamin Murmelstein. Este suposto governo reportava todas as decisões para a SS e estava vinculado às decisões do comande do campo.
Uma das ruas principais de Terezín, desenho de Otto Unger, prisioneiro de Theresienstadt. A estrutura arquitetónica à esquerda é o Pavilhão Magdeburg, onde funcionava a administração judaica do Gueto (Fonte: https://www.infocenters.co.il/gfh/multimedia/Photos/Idea/24662.jpg)
O Pavilhão Magdeburg abrigava os escritórios dos diferentes departamentos da chamada Autoadministração Judaica do Gueto, bem como apartamentos de alguns dos principais detentores de escritórios do Gueto. Mas o quartel de Magdeburg também ficou conhecido como local de grandes eventos culturais, cultos divinos, palestras e reuniões. Era no seu hall que as representações teatrais aconteciam, inclusive a ópera infantil Brundibár, que ali foi apresentada mais de 50 vezes.
O comandante das SS, Siegfried Seidl, serviu inicialmente como comandante do campo (mais tarde chamado de "chefe do serviço" para disfarçar o caráter de campo de concentração no gueto). Depois, assumiu esta função o comandante das SS Anton Burger, de julho de 1943 a fevereiro de 1944 e, finalmente, o comandante das SS, Karl Rahm. Nessa capacidade, Rahm também organizou o “trabalho de embelezamento” no gueto antes das duas visitas de delegados do Comité Internacional da Cruz Vermelha (CICV) em junho de 1944 e abril de 1945.
Judeus proeminentes (cientistas, heróis de guerra, artistas com fama internacional) são convidados a habitar uma cidade aprazível como se fosse uma instância termal, sob a proteção do Führer. Teriam ali bons alojamentos, alimentação, cuidados médicos, desde que assinassem um contrato cedendo os seus bens ao Reich (que assim ganhou cerca de 400 milhões de marcos).
E assim eles foram chegando a Theresienstadt, carregados de malas e preparados para uma permanência longa. Devem passar de início por uma caserna isolada que serve de entrada ao gueto. As famílias exibem logo os seus contratos que deveriam assegurar-lhes proteção e bem-estar. Os SS apoderam-se das suas bagagens, pilhando tudo o que possa ter algum valor. Homens respeitáveis, mulheres finamente vestidas e crianças delicadas são despojados do que possuíam e obrigados a dormir no solo. Após noites e dias de uma brutal aprendizagem, saem da caserna amarrotados e sujos, olhos dilatados de espanto. Os membros da família são separados e começam a trabalhar para a indústria alemã. Numa caserna que abrigara outrora 20 soldados, são alojadas 100 a 400 pessoas desde os porões até ao sótão. Numa casa onde moravam oito pessoas têm de se abrigar mais de 50. Alguns Prominenten poderão morar em casas com suas famílias, mas a grande maioria é alojada nas casernas onde os homens são separados das mulheres.
Mortes em Theresienstadt de 24 de novembro de 1941 a 31 de dezembro de 1943 (Estatísticas do Departamento de Construção Nazi de 1 de janeiro de 1944. (Fonte: http://collections.jewishmuseum.cz/index.php/simpleGallery/Show/displaySet/set_id/24)
Mapa do Protectorado da Boémia e Mrávia, indicando os pontos de reunião dos judeus e o número de pessoas deportadas, com a localização de Terezín (Fonte: http://pinkas.jewishmuseum.cz/cesty-bez-navratu)
Dos aproximadamente 150000 prisioneiros de Terezín, mais de 30000 morreram nos anos 1941-1945 como resultado de fome, falta de higiene, superlotação e doenças e outros 90 000 foram deportados para guetos e campos de extermínio no Leste. Apenas cerca de 4000 sobreviveram, incluindo cerca de 100 das 15000 crianças que foram deportados para lá. Em 1 de maio de 1945, o controlo do campo foi transferido dos alemães para a Cruz Vermelha. Uma semana depois, a 8 de maio de 1945, Theresienstadt foi libertada por tropas soviéticas.
A vida cultural em Terezín
Vários fatores diferenciam Theresienstadt de outros campos nazis. O primeiro diz respeito à função mesmo do gueto, que teve apenas um papel secundário na economia de guerra alemã. Por este motivo, as condições de vida eram relativamente mais brandas do que nos outros campos, onde os detidos foram literalmente mortos pelo trabalho. Em Terezín, o regime de sanções também era geralmente mais leve. Pese embora isto, as condições de vida permaneciam terríveis, com uma higiene deplorável que promovia o desenvolvimento de doenças e todos os prisioneiros tiveram que trabalhar dez a doze horas por dia, sob condições de subnutrição crónica.
Apesar destas condições, desenvolveu-se uma vida cultural particularmente ativa em Theresienstadt, dado que ali foram aprisionados muitos judeus cultos, e o campo foi propagandeado pelos nazis como um lugar de rica vida cultural – uma ilusão cosmética para esconder o horror do lugar. Pelo menos quatro orquestras foram obrigadas a tocar no campo, assim como grupos e bandas de jazz. Muitas performances de palco foram produzidas por prisioneiros obrigados a agir assim para que uma face bonita do holocausto pudesse ser apresentada ao mundo. Alguns artistas proeminentes da Checoslováquia, Áustria, e Alemanha foram presos lá. Havia artistas, escritores, cientistas e juristas, diplomatas, músicos e professores. A maioria foi morta. Por outro lado, estes prisioneiros constituíam um público particularmente atento, pelo que o Conselho Judaico apoiava e defendia, junto das autoridades nazis, iniciativas culturais que pudessem resultar na melhoria da moral dos prisioneiros. Sob o impulso do rabino Erich Weiner e com o consentimento das SS, foi criado o Freizeitgestaltung (Organização do tempo livre), no final de 1942, com o objetivo de organizar e coordenar os diferentes eventos culturais, artísticos e desportivos do campo.
«Espetáculo musical no Gueto», desenho de Arnost Klein, Theresienstadt, 1942-1944 e bilhetes para um concerto de jazz, em Theresienstadt, 1945 (Fonte: https://www.voixetouffees.org/assets/expofrancais3.pdf)
Assim, se por um lado esta vida cultural era forçada, por outro constituía um fator de resistência e de denúncia. À noite, os prisioneiros improvisavam pequenas peças clandestinas em diferentes línguas. Sem cenário, jogam com a luz e sombra dos dormitórios. Com papel, com palha, com sacos vão criando costumes. Aos poucos vêm à cena Gogol, Tchékov, Molière, Cocteau... Muitos prisioneiros foram atores. Os prisioneiros checos ousavam apresentar peças de cariz político, pois os SS não entendiam a sua língua: numa delas a Imperatriz Maria Teresa observa com telescópio o mundo moderno, especialmente Terezín criado em sua homenagem. Karel Svenk em O último ciclista conta a história de um ditador que acusa os ciclistas de serem culpados por todos os males do país, bem como os seus descendentes e vai deportando-os para a Ilha dos Horrores. Só um ciclista foge e é salvo porque o ditador não pode subsistir sem um bode expiatório. Durante as sucessivas representações da peça, que faz um enorme sucesso, os atores vão desaparecendo nos comboios para o leste.
Esta vida cultural chegou a incluir a chamada "Universidade de Theresienstadt", onde prisioneiros auto-organizados davam palestras para todos os prisioneiros nas "noites de camaradagem". Entre os palestrantes autoproclamados estavam pessoas importantes, como Leo Baeck, Viktor Frankl ou Desider Friedmann, para citar apenas alguns. A maioria destes artistas e intelectuais acabou assassinada nos campos de extermínio, como Auschwitz.
Havia, ainda, cerca de 15000 crianças (das quais terão sobrevivido no final da guerra cerca de 150) entre os prisioneiros em Theresienstadt, que foram alojadas nos chamados “lares para crianças”, de acordo com o sexo e a faixa etária. O autogoverno judaico tentou assegurar um cuidado especial com elas, apesar de ser proibido educá-las, sendo apenas permitido que a partir de certa idade trabalhassem. À custa, por vezes, da hipótese de sobrevivência dos mais idosos, as crianças recebiam comida um pouco melhor e eram secretamente educados pelos seus cuidadores e supervisores.
A artista e professora de artes Friedl Dicker-Brandeis criou aulas de pintura para as crianças no gueto. Essa atividade resultou na produção de cerca de quatro mil pinturas infantis, que Dicker-Brandeis escondeu, num dos dormitórios das crianças, em duas malas antes de ser deportada para Auschwitz. Essa coleção foi poupada da destruição pelos nazis e não foi descoberta durante uma década. A maioria destes desenhos pode ser vista no Museu Judaico em Praga. As aulas de desenho tinham um lugar privilegiado no programa educacional do Gueto. Dicker-Brandeis usava nas suas aulas metodologias experimentais adotadas da sua experiência com o seu professor Johann Itten (1888–1967), mas também com outros pioneiros da arte experimental da Escola da Bauhaus em Weimar, onde estudara entre 1919 to 1923. Nas extremas condições do Gueto, estas aulas tornaram-se num dos pilares do clandestino programa educativo de Terezín. O seu objetivo, como a mesma referiu, não era ensinar as crianças a ser artistas, mas fazê-las desenvolver a sua inteligência criativa, emocional e social.
Fantasia subaquática de Ruth Gutmannová (1930–1944), s/d (1943–44). No verso pode ler-se: Gutmann, Ruth, L 410, Quarto 28, 13 anos. Desenho criado durante as aulas de desenho da pintora e professora Friedl Dicker-Brandeis (1898–1944) Ruth foi assassinada em Auschwitz em outubro de 1944 (Fonto: https://www.jewishmuseum.cz/)
Aguarelas de Petr Ginz, 1943/1944, também aluno de Friedl Dicker-Brandeis, que em 28 de setembro de 1944 foi deportado para Auschwitz, onde morreu. (Fontes: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Petr_Ginz_-_Interi%C3%A9r_obytn%C3%BDch_m%C3%ADstnost%C3%AD_v_Terez%C3%ADnsk%C3%A9m_ghettu_(1943).jpg e https://www.facinghistory.org/resource-library/image/ghetto-barracks-petr-ginz)
As crianças do campo também escreveram contos e poemas, alguns dos quais foram preservados e posteriormente publicados. Entre estas publicações, destaca-se a revista literária Vedem, escrita e editada pelos rapazes de 12 a 15 anos do Quarto 1 do Quartel L417, e cujos editores chefes eram o editor-chefe Petr Ginz (que também pintava) e Hanuš Hachenburg. O conteúdo do Vedem incluía poemas, ensaios, reportagens sobre o gueto, piadas, diálogos, resenhas literárias, histórias e desenhos. Tudo era reproduzido manualmente e lido no quartel na noite de sexta-feira. Por algum tempo, a revista também foi publicada no quadro de avisos do quartel, no entanto, foi decidido interromper essa prática porque era considerada perigosa no caso de inspeções das SS.
N.º 46 da revista Vedem (Fonte: https://en.wikipedia.org/wiki/Vedem)
A inspiração para os autores de Vedem foi o professor, Valtr Eisinger, de 28 anos, nomeado para supervisionar os meninos naquele quartel. No meio do horror de um campo de concentração, este professor conseguiu fomentar-lhes o amor pela literatura e encorajou-os a expressar-se criativamente, descrevendo o que testemunharam (geralmente em tom de humor) e as suas esperanças para o futuro. Provavelmente foi sob a sua influência que os rapazes adotaram um foguete, inspirado em Jules Verne, passando por um livro até outro planeta, como símbolo de seu quartel e revista.
O símbolo da e na revista Vedem, desenhado por Petr Ginz (Fontes:
https://www.inquirer.com/news/nazi-terezin-concentration-camp-survivor-vedem-keystone-boychoir-20190622.html)
O símbolo da e na revista Vedem, desenhado por Petr Ginz (Fontes: https://www.facinghistory.org/resource-library/image/vedem-petr-ginz)
Outra das artes que em Terezín teve amplo desenvolvimento foi a música. Daremos apenas alguns exemplos. O compositor Viktor Ullmann, preso em setembro de 1942 e assassinado em Auschwitz em outubro de 1944, compôs cerca de 20 obras em Theresienstadt, incluindo uma ópera de um ato, Der Kaiser von Atlantis (O Imperador de Atlantis ou A Rejeição da Morte), que apenas foi apresentada pela primeira vez em 1975. Um dos mais espetaculares concertos apresentados em Terezín foi, sem dúvidas, o Requiem de Verdi executado por quatro solistas sob a direção do maestro Rafael Schächter, sendo a componenete orquestral tocada ao piano por Gideon Klein. Este ambicioso projeto mobilizou um coro de 150 pessoas e foi, como não podia deixar de ser, usado pela propaganda nazi.
Cartaz e a única fotografia dos prisioneiros de Terezín a cantar o Requiem de Verdi, precisamente na sua última apresentação feita a 23 de junho de 1944, como ação de propaganda, perante as chefias SS e elementos da Cruz Vermelha. Na fotografia vê-se o maestro Raphael Schachter a conduzir o coro, maestro que será assassinado em Auschwitz em outubro de 1944 (Fontes: https://youngsdreamworks.wordpress.com/2016/06/22/remembering-raphael-rafi-schachter-final-act-72-years-later/ e https://www.defiantrequiem.org/about/more-about-theresienstadt-rafael-schachter-and-the-requiem/
Apesar da música ligeira, do jazz e do swing serem considerados tipos de música degenerada pelos nazis, também estes estilos estiveram presentes em Terezín. Kurt Gerron (1897-1944), artista famoso do cabaré alemão e que participou em obras de Brecht e Weill, mal chegou a Terezín montou um espetáculo em alemão com o pianista Martin Roman chamado Karussell. Será a ele que as autoridades nazis confiarão a realização de um filme de propaganda sobre Terezín.
Cartaz de Karussell (Fonte: https://www.voixetouffees.org/assets/expofrancais3.pdf)
Os Ghetto Swingers tocam em Terezin, para o filme de propaganda nazi sobre a vida no campo de concentração, realizado por Kurt Gerson, 1944 (Fonte: https://idi.mne.pt/pt/atividades/ihra-delegacao-portuguesa/ihra-noticias/memoria-dos-exilios-dia-internacional-dos-museus-musica-degenerada-ghetto-swingers-e-swingjugend)
A 8 de janeiro de 1943, o trompetista amador Erich Vogel anunciou ao comandante do gueto a criação de uma big band, os " Ghetto Swingers ", acompanhado pelo guitarrista e baterista Heinz "Coco" Schumann em 1943, e para o qual Weiss e o pianista holandês Martin Roman escreveram cerca de trinta arranjos. Entre os mais famosos figuram o “I got rythm” de Gershwin. Finalmente, Brundibár (O resmungão). Esta é uma ópera para crianças, de 40 minutos. Composta em 1938, por Hans Krása, com letra de Adolf Hoffmeister, quando Krása venceu um concurso de composição de ópera para crianças organizada pelo Ministério da Educação da Checoslováquia. Explicitamente escrito sob o espírito das peças educativas de Brecht, Brundibár quer demonstrar em termos simples, os mecanismos de dominação e de revolta. Em Theresienstadt, alguns anos depois, esta mensagem terá uma dimensão particularmente forte.
Manuscrito de Brundibár, Versão de Praga, Hans Krása, Adolf Hoffmeister
Manuscrito de Brundibár, Versão deTerezin, Hans Krása
Ópera infantile de Brundibár – piano, Hans Krása, Adolf Hoffmeistr
(Fonte: Museu de Terezin, Praga)
Em 1939, a aplicação das leis antissemitas no Protetorado da Boémia e Morávia tornaram impossível a criação da ópera, e foi somente em 1941 que, sob o ímpeto do maestro Rafael Schächter, as crianças de um orfanato judeu em Praga começaram, clandestinamente, a ensaiar Brundibár para representá-la. Estas apresentações realizaram-se durante o inverno de 1942-43. Depois da segunda apresentação em Praga, as crianças do orfanato foram deportadas para Terezin, onde Schächter já estava, bem como o compositor Krása e o aderecista e construtor de cenários František Zelenka, tendo estes, então, decidido montar a ópera para distrair as crianças do campo.
Brundibár (propostas de cenário) de Frantisek Zelenka, 1943 (Fontes: Museu de Terezin, Praga e https://sophia.smith.edu/terezin/art/brundibar-set-design/)
Reunido com o elenco em Theresienstadt, Krása reconstruiu a partitura completa da ópera, com base na sua memória e na partitura parcial para piano que permaneceu nas suas mãos, adaptando-a aos instrumentos musicais disponíveis no campo: flauta, clarinete, violão, acordeão, piano, percussão, quatro violinos, violoncelo e contrabaixo. Um cenário foi novamente projetado por František Zelenka: vários apartamentos foram pintados como pano de fundo, em primeiro plano havia uma cerca com desenhos de gato, cão e pardal e buracos para os cantores inserirem as suas cabeças no lugar das cabeças dos animais. E começaram os ensaios no Pavilhão Dresden.
Cartaz para uma apresentação de Brundibár, Theresienstadt, 1944 e fotografia das crianças da ópera de Brundibár a partir do filme de propaganda «Theresienstadt» (Fonte: https://en.wikipedia.org/wiki/Brundib%C3%A1r)
Um poster de recordação para a encenação da ópera infantil Brundibár (Walter Heimann) (Fonte: Museu de Terezin, Praga)
Após quase dois meses de ensaios, a 23 de setembro de 1943, Brundibár estreou em Theresienstadt, no Pavilhão Magdeburg. A produção foi dirigida por Zelenka, encenada por Rudolf Freudenfeld e coreografada por Camilla Rosenbaum e foi exibida 55 vezes no ano seguinte, enfrentando sempre a deportação das pequenas crianças que nela participaram.
Inscrição com uma lembrança de Brundibár de Rudolf Freudenfeld (Fonte: Museu de Terezin, Praga)
Hora de fecho das sessões de Brundibár pelos anciãos da casa (Jo Spier) (Fonte: Museu de Terezin, Praga)
Os nazis logo perceberam o potencial propagandístico dessa iniciativa artística, organizando uma nova e última encenação da ópera (55 vezes apresentada na gueto), no Outuno de 1944, para o filme “Theresienstadt - Eine Dokumentarfilm aus den Jüdische Siedlungsgebiet”, dirigido pelo cineasta Kurt Gerron. Essa mesma produção teatral de Brundibár fora já apresentada, com palco, cenários e adereços melhores, quando a Cruz Vermelha inspecionou Terezin, em 23 de junho de 1944.
Fotografia da ópera infantil Brundibar partir do filme de propaganda «Theresienstadt» (Fonte: https://photos.yadvashem.org/)
A história de Brundibár é simples: Aninka e Pepícek são duas crianças cuja mãe está doente. Para a curar, o médico receitou-lhes leite e os filhos vão procurar leite no mercado da cidade, porém não têm dinheiro para comprá-lo. Três comerciantes oferecem os seus produtos: um sorveteiro, um padeiro e um leiteiro. As crianças tratam de obter o leite com cada um deles, mas não têm dinheiro para concretizar o seu objetivo.
Uma forma de ganhar dinheiro ocorre-lhes quando veem o tocador de realejo Brundibár a ganhar dinheiro no mercado. No entanto, Brundibár é maléfico e grita para as crianças. Durante a noite, os animais do cartaz vêm ajudar as crianças desesperadas, e no dia seguinte ajudam as crianças a cantar mais alto do que o tocador de realejo. As crianças recebem o seu dinheiro, mas o patife Brundibár tira-lhes os seus ganhos. No final, as crianças encontram-no e recebem de volta o que lhes pertence. As linhas finais, tal como escritas por Adolf Hoffmeister, são as seguintes: "Aquele que ama a sua mamã e o seu papá e a nossa terra natal é nosso amigo e pode brincar connosco". Para a representação da ópera no gueto de Terezín, Emil Saudek mudou o final para "Aquele que ama a justiça e a apoiará, nada temerá...". O final tornou-se algo como um hino de Terezín. Os atores e o público sabiam demasiado bem, juntamente com a luta das crianças inocentes contra Brundibár, qual era o significado destas palavras.
Dos numerosos depoimentos sobre a ópera, talvez o mais significativo e emotivo seja o de Handa Pollak que afirmava: “Brundibár era o nosso pequeno segredo contra Hitler. Nós lutávamos contra Brundibár, o tocador de realejo, mas Brundibár não era Brundibár - era Hitler. E os comerciantes que negavam leite, pão ou sorvete às crianças não eram só lojistas, eram os SS – as pessoas más. E, no final, vencíamos. Isto significava tudo para nós”. A ópera infantil Brundibár era, para os judeus, uma luz na escuridão, um ato de resistência, um símbolo da esperança e da fé na vitória sobre os alemães.
Terezín, a mentira de Hitler (A propaganda e a visita da Cruz Vermelha Internacional)
Assistir ao filme “O Führer oferece uma cidade aos judeus” coloca-nos diante da singularidade do que foi Theresienstadt. É possível que tenha sido essa a mesma surpresa sentida pelos membros da Cruz Vermelha Internacional na rápida visita de inspeção às condições dos prisioneiros, realizada em 23 de junho de 1944. Em finais de 1943, quando os rumores sobre o que estava a acontecer nos campos nazis começaram a espalhar-se pelo mundo exterior, os alemães decidiram permitir a visita de um comité de investigação da Cruz Vermelha Internacional a Theresienstadt como "Cidade Modelo". Em preparação para a visita, muitos prisioneiros foram deportados para Auschwitz para reduzir a superlotação do campo.
Na ocasião, os elementos da Cruz Vermelha encontraram uma urbe de judeus; um lugar onde corriam notas de dinheiro impressas com a efígie de Moisés e as Tábuas da Lei. Ouviram um Requiem de Verdi cantado pelo coral de Theresienstadt. Os grupos de teatro representavam duas peças de Shakespeare, e nos programas de ópera apresentava-se a ópera Carmen, Tosca e Flauta Mágica, além de Brundibár, ópera infantil composta por um autor do gueto.
Pelos documentários sobre Theresienstadt (foram realizados pelo menos dois sobre este gueto, um em 1942 e outro em 1944), vemos que as orquestras, conjuntos de jazz e de música clássica impressionaram muito os visitantes. Os prisioneiros também praticaram desportos, sobretudo voleibol e futebol. Havia instalações sanitárias, 400 médicos (professores célebres), as pessoas, sempre bem vestidas, consultavam obras numa rica e agradável biblioteca. Tudo refletia harmonia e tranquilidade.
Theresienstadt é apresentada como uma sociedade comunista, dirigida por um sociólogo judeu, de alto valor, de nome Paul Eppstein (1901-1944). Ele preside o Judenrat, um Conselho de Anciãos da comunidade. Além dele, 150 polícias checos fazem a guarda do gueto e 12 oficiais nazis comandam o campo instalado na fortaleza. A equipa pedagógica do campo era qualificada e o jardim de infância (criado para essa visita da Cruz Vermelha), adequado e moderno. A escola estava bem equipada e um cartaz indicava que as crianças estavam de férias. O relatório da Cruz Vermelha ainda observou que uma cozinha especializada preparava os alimentos das crianças.
O “melhor” documentário do campo de Theresienstadt é obra de um prisioneiro alemão, o ator e cineasta Kurt Gerron (1897-1944), deportado com a sua mulher para Auschwitz-Birkenau. Hitler muito se serviu desse filme para convencer os aliados o quanto eram felizes os judeus sob a tutela do Reich. Desde que Eichmann anunciara a visita da Cruz Vermelha a Theresienstadt, a transformação do campo foi acelerada, fazendo surgir jardins decorados com plantas, balanços de crianças, um coreto para música, calçadas lavadas e casas recentemente pintadas. Cada um dos figurantes do filme ganha roupas novas, sendo instruído sobre como devia comportar-se, ciente dos riscos de uma eventual desobediência.
Terezín, a mentira de Hitler – fotografias tiradas pelo Maurice Rossel, médico suíço da Cruz Vermelha, durante a visita de 23 de junho de 1944 (Fonte: https://photos.yadvashem.org/)
Em 23/06/1944, os ilustres convidados tiraram fotos, recebendo um álbum de belas aquarelas de “uma cidade normal de província”. O Dr. Maurice Rossel, médico suíço da Cruz Vermelha, registou em seu relatório sobre a visita: “Gostaríamos de dizer que ficamos muito surpresos ao encontrar no gueto uma cidade que vive uma vida praticamente normal”. Pouco tempo depois, com ar de ingenuidade, o médico confessa haver sido enganado, pois jamais duvidou de nada, não recebeu bilhete nenhum de prisioneiro sobre qualquer anormalidade no lugar e, muito menos, suspeitou que tudo fora previamente montado para visitantes ocasionais. Aproveitando os falsos melhoramentos realizados em Terezín para a "inspeção", os nazis prepararam um filme de propaganda, durante e nos meses seguintes à visita da Cruz Vermelha Internacional, mostrando ostensivamente judeus a levar uma "nova vida sob a proteção do Führer". Quando o filme foi concluído, a maior parte do "elenco", nomeadamente da ópera «Brundibár» que fez a sua última apresentação para este filme, no Outono de 1944, foi deportada para Auschwitz e para a sua morte. O filme nunca foi exibido ao comité da Cruz Vermelha.
Bibliografia: BRENNER, Hannelore – As meninas do quarto 28. S. Paulo, Leya, 2014 BRENNER, Hannelore – Theresienstadt. The girls of Room 28, Compendium 2017. Room 28 Educational Projet, Edition Room 28, 2017.