Introdução: Arte, Cultura, Nazismo e Holocausto
«depois de Auschwitz, escrever um poema é bárbaro»
Theodor W. Adorno, 1949[1]
FUGA DA MORTE [TODESFUGE]
Leite negro da madrugada bebemo‑lo ao entardecer
bebemo‑lo ao meio‑dia e pela manhã bebemo‑lo de noite
bebemos e bebemos
cavamos um túmulo nos ares aí não ficamos apertados
Na casa vive um homem que brinca com serpentes escreve
escreve ao anoitecer para a Alemanha os teus cabelos de oiro Margarete
escreve e põe‑se à porta da casa e as estrelas brilham
assobia e vêm os seus cães
assobia e saem os seus judeus manda abrir uma vala na terra
ordena‑nos agora toquem para começar a dança
Leite negro da madrugada bebemos‑te de noite
bebemos‑te pela manhã e ao meio‑dia bebemos‑te ao entardecer
bebemos e bebemos
Na casa vive um homem que brinca com serpentes escreve
escreve ao anoitecer para a Alemanha os teus cabelos de oiro Margarete
Os teus cabelos de cinza Sulamith cavamos um túmulo nos ares aí não ficamos apertados
Ele grita cavem mais fundo no reino da terra vocês aí e vocês outros cantem e toquem
leva a mão ao ferro que traz à cintura balança‑o azuis são os seus olhos
enterrem as pás mais fundo vocês aí e vocês outros continuem a tocar para a dança
Leite negro da madrugada bebemos‑te de noite
bebemos‑te ao meio‑dia e pela manhã bebemos‑te ao entardecer
bebemos e bebemos
na casa vive um homem os teus cabelos de oiro Margarete
os teus cabelos de cinza Sulamith ele brinca com as serpentes
E grita toquem mais doce a música da morte a morte é um mestre que veio da Alemanha
grita arranquem tons mais escuros dos violinos depois feitos fumo subireis aos céus
e tereis um túmulo nas nuvens aí não ficamos apertados
Leite negro da madrugada bebemos‑te de noite
bebemos‑te ao meio‑dia a morte é um mestre que veio da Alemanha
bebemos‑te ao entardecer e pela manhã bebemos e bebemos
a morte é um mestre que veio da Alemanha azuis são os teus olhos
atinge‑te com uma bala de chumbo acerta‑te em cheio
na casa vive um homem os teus cabelos de oiro Margarete
atiça contra nós os seus cães oferece‑nos um túmulo nos ares
brinca com as serpentes e sonha a morte é um mestre que veio da Alemanha
os teus cabelos de oiro Margarete
os teus cabelos de cinza Sulamith[2]
in CELAN, Paul – Sete Rosas mais tarde: Antologia Poética
(sel., trad. e introd. de João Barrento e Y. K. Centeno),
Lisboa, Edições Cotovia, 1996.
[1] No decurso de uma conferência na Universidade de Frankfurt.
[2] Poema escrito em 1945 e publicado em 1948.
Theodor W. Adorno, 1949[1]
FUGA DA MORTE [TODESFUGE]
Leite negro da madrugada bebemo‑lo ao entardecer
bebemo‑lo ao meio‑dia e pela manhã bebemo‑lo de noite
bebemos e bebemos
cavamos um túmulo nos ares aí não ficamos apertados
Na casa vive um homem que brinca com serpentes escreve
escreve ao anoitecer para a Alemanha os teus cabelos de oiro Margarete
escreve e põe‑se à porta da casa e as estrelas brilham
assobia e vêm os seus cães
assobia e saem os seus judeus manda abrir uma vala na terra
ordena‑nos agora toquem para começar a dança
Leite negro da madrugada bebemos‑te de noite
bebemos‑te pela manhã e ao meio‑dia bebemos‑te ao entardecer
bebemos e bebemos
Na casa vive um homem que brinca com serpentes escreve
escreve ao anoitecer para a Alemanha os teus cabelos de oiro Margarete
Os teus cabelos de cinza Sulamith cavamos um túmulo nos ares aí não ficamos apertados
Ele grita cavem mais fundo no reino da terra vocês aí e vocês outros cantem e toquem
leva a mão ao ferro que traz à cintura balança‑o azuis são os seus olhos
enterrem as pás mais fundo vocês aí e vocês outros continuem a tocar para a dança
Leite negro da madrugada bebemos‑te de noite
bebemos‑te ao meio‑dia e pela manhã bebemos‑te ao entardecer
bebemos e bebemos
na casa vive um homem os teus cabelos de oiro Margarete
os teus cabelos de cinza Sulamith ele brinca com as serpentes
E grita toquem mais doce a música da morte a morte é um mestre que veio da Alemanha
grita arranquem tons mais escuros dos violinos depois feitos fumo subireis aos céus
e tereis um túmulo nas nuvens aí não ficamos apertados
Leite negro da madrugada bebemos‑te de noite
bebemos‑te ao meio‑dia a morte é um mestre que veio da Alemanha
bebemos‑te ao entardecer e pela manhã bebemos e bebemos
a morte é um mestre que veio da Alemanha azuis são os teus olhos
atinge‑te com uma bala de chumbo acerta‑te em cheio
na casa vive um homem os teus cabelos de oiro Margarete
atiça contra nós os seus cães oferece‑nos um túmulo nos ares
brinca com as serpentes e sonha a morte é um mestre que veio da Alemanha
os teus cabelos de oiro Margarete
os teus cabelos de cinza Sulamith[2]
in CELAN, Paul – Sete Rosas mais tarde: Antologia Poética
(sel., trad. e introd. de João Barrento e Y. K. Centeno),
Lisboa, Edições Cotovia, 1996.
[1] No decurso de uma conferência na Universidade de Frankfurt.
[2] Poema escrito em 1945 e publicado em 1948.
Como refere Jorge Calado, no artigo «Políticas Degeneradas», “A arte á a ponta do icebergue das nações – aquilo que justifica e sua existência e lhes dá visibilidade. Ataque-se a arte e o desastre é inevitável, a guerra iminente. […] Na Alemanha, a ofensiva nazi contra a arte moderna é indissociável da II Guerra Mundial. Não será uma relação de causa-efeito, mas um sintoma. Coarte-se ou regule-se a arte (e os artistas) e atrás (ou à frente) vêm a literatura, a liberdade de expressão e a tolerância do outro”. A origem deste ódio à arte moderna remonta ao séc. XIX e à “própria fundação da nação alemã. Primeiro formulou-se a teoria; gradualmente passou-se às aplicações”[1].
No final do séc. XIX, Max Nordau, paradoxalmente um judeu assimilado, publica “Entartung” (“Degeneração”) onde “chegou mesmo a equiparar o artista moderno a um criminoso ou, pelo menos, a um anarquista ou lunático produtor de obras de arte imorais”, mas que estes degenerados ou fracos iriam desaparecer mediante a evolução darwiana, onde os mais aptos e belo triunfam.
[1] CALADO, Jorge – «Políticas degeneradas». In: Expresso, Edição n.º 2168, 17 de maio de 2014, Caderno Atual: 13.
Hitler foi especialmente influenciado por teóricos como Houston Stewart Chamberlain, casado com uma filha de Richard Wagner, e que, na sua obra «Os fundamentos do século XIX», de 1899, defendia a superioridade da raça ariana e consequentemente a sua cultura.
A afirmação do racismo e a sistemática destruição da arte e das obras de autores progressistas e judeus surgem idealizadas já no «Mein Kampf», passando-se à concretização da “proteção da pureza da raça”, logo a partir de 1933, através de decretos legislativos que iniciam a marginalização e depois eliminação dos judeus de todos os setores da vida pública alemã, passando pela constituição do Reichskulturkammer (RKK) ou Câmara da Cultura do Reich, em 1933, cujo objetivo era controlar a vida cultural da Alemanha, submetendo a arte e a cultura à linha de pensamento dos ideais nacional-socialistas.
Documento de identificação e autorização produzido pelo Reichskulturkammer, em 1937, para Charlotte Feder e utilizado pelo menos até 1942. O seu número de identificação era o 76214 e ela podia tocar música em público. O documento indica que Charlotte tocava bateria e tinha autorização para tocar numa orquestra de Berlim. (Fonte: http://www.od43.com/Reichskulturkammer_ID_1937.html)
No entanto, os primeiros casos de violência e intolerância contra músicos indesejáveis ao NSDAP surgem, ainda, durante a República de Weimar. São disto exemplo: o afastamento de três Diretores do Landestheater de Darmstadt; a criação, em 1928, da Kampfbund für Deutsche Kultur (Liga Militante para a Cultura Alemã) que tinha como objetivo impor o Nazismo através da arte figurativa e da música ou a mudança coerciva da Bauhaus (bastião alemão do modernismo) de Weimar para Dessau, em 1925, e depois para Berlim em 1932, tendo sido extinta, pelos nazis, em 1933.
A arte era, pois, um pilar essencial da estrutura do nazismo. Como explica o historiador Miguel Martorell, “os nazis perceberam, desde os primeiros momentos, que a arte é um magnífico veículo para a propaganda política, para definir e controlar a sociedade. […] De facto, desde o início do regime tudo o que é artístico depende do Ministério de Informação e Propaganda de Joseph Goebbels, encarregado desde meados dos anos 30 de criar um conceito muito específico de sociedade”[1].
O que significava isto em termos de Arte? Como refere Jorge Salvado, “para Hitler, “ser alemão significava ser claro”. Na arte, glorificavam-se o homem musculado e a mulher esbelta – o ideal greco-nórdico. […] Os outros eram, no mínimo, ignorados (despois perseguidos e exterminados)”[2]. Como expõe Martorell, “apenas a arte figurativa, em que se baseava a tradição pictórica alemã, era valorizada, enquanto toda a arte das vanguardas é caracterizada como decadente e degenerada, sendo associada aos judeus, ao comunismo e à dissidência política, logo deve ser retirada do espaço público. Assim, de uma forma perversa, a arte ergue-se como uma porta-voz de um modelo de sociedade ideal. Uma sociedade onde não existem dissonâncias nem dissidências, porque não há arte política contra o regime”.[3]
[1] https://elcultural.com/nazismo-y-arte-la-cultura-como-arma
[2] CALADO, Jorge – «Políticas degeneradas». In: Expresso, Edição n.º 2168, 17 de maio de 2014, Caderno Atual: 13.
[3] https://elcultural.com/nazismo-y-arte-la-cultura-como-arma
A “Grande Exposição de Arte Alemã” (Grosse Deutsche Kunstausstellung) (GDK) de 1937
(Fontes: https://www.dhm.de/lemo/bestand/objekt/grosse-deutsche-kunstausstellung-1937.html e https://www.pinterest.pt/pin/733805333013554271/)
(Fontes: https://www.dhm.de/lemo/bestand/objekt/grosse-deutsche-kunstausstellung-1937.html e https://www.pinterest.pt/pin/733805333013554271/)
“Por um lado, denegria-se a arte moderna; por outro, procurava-se uma arte oficial limpa, otimista e triunfante. Em 1933, Hitler lançou a primeira pedra de um grandioso edifício (Haus der Deuschen Kunst) que viria a albergar a “Grande Exposição de Arte Alemã” (Grosse Deutsche Kunstausstellung) (GDK) de 1937”, ao mesmo tempo que se iniciam as «exposições da vergonha» “onde se achincalhava a “barbárie cultural” de artistas como Chagall, Munch, Kokoschka, etc. As obras eram exibidas com os respetivos preços de aquisição, sem ter em conta a hiperinflação galopante dos anos 20”[1].
[1] CALADO, Jorge – «Políticas degeneradas». In: Expresso, Edição n.º 2168, 17 de maio de 2014, Caderno Atual: 13.
A exposição Entartete Kunst (EK) ou «Exposição de Arte Degenerada», inaugurada em julho de 1937, em Munique
(Fontes: https://www.reddit.com/r/europe/comments/9my723/germans_queuing_for_the_entartete_kunst_ie/ e https://www.sueddeutsche.de/politik/kunst-im-nationalsozialismus-entartete-und-gottbegnadete-1.2496756)
(Fontes: https://www.reddit.com/r/europe/comments/9my723/germans_queuing_for_the_entartete_kunst_ie/ e https://www.sueddeutsche.de/politik/kunst-im-nationalsozialismus-entartete-und-gottbegnadete-1.2496756)
É neste âmbito, que se deu especial destaque à Exposição Entartete Kunst (EK) ou «Exposição de Arte Degenerada», inaugurada em julho de 1937, em Munique, onde a máquina de propaganda nazi visava reduzir o conceito de arte do modernismo de vanguarda ao absurdo e associar a arte moderna à degeneração e decadência, apresentando-a como uma arte “doente”, “judaica-bolchevique”, servindo também para legitimar a perseguição a adversários políticos e “racialmente inferiores”.
“As GDK e EK funcionaram como o yin e o yang da situação artística alemã. Eram vizinhas e abriram em dias consecutivos: 18 e 19 de julho de 1937. […] Propositadamente mal comissariada e exposta, a Entartete Kunst foi visitada por mais de dois milhões de pessoas; a da Arte Alemã, por menos de meio milhão. A arte do regime é, por natureza, pouco interessante. As GDK sucederam-se anualmente (até 1945) e apresentaram cerca de 12500 obras. A EK foi exibida numa dúzia de cidades alemãs e austríacas”.[1]
[1] CALADO, Jorge – «Políticas degeneradas». In: Expresso, Edição n.º 2168, 17 de maio de 2014, Caderno Atual: 13.
Quando começa a guerra em 1939, o regime nazi decide exportar este ideário cultural além-fronteiras e converter-se na grande potência cultural europeia. Uma forma de o demonstrar era o colecionismo de obras de arte conseguido através do saque monumental realizado pela Europa ocupada. Em apenas quatro anos de invasão, levam-se de França cerca de 100000 obras de arte e objetos culturais; da Holanda cerca de 30000, da Bélgica, uns 20000 e da Europa de Leste nem sequer existem números aproximados.[1]
[1] https://elcultural.com/nazismo-y-arte-la-cultura-como-arma
Como uma das artes, a música foi tratada pelos nazis como um elemento da identidade nacional alemã (Deutschland das Land Der Musik) pelo que, nesse contexto, a música assumia uma importância essencial para educar no culto da superioridade da raça ariana, levando a população à total adesão ao projeto da Grande Alemanha, com destaque para o papel do Reichsmusikkammer, um dos sete departamentos do RKK, inicialmente dirigido por Richard Strauss, na divulgação da “boa música alemã” e da arte musical do III Reich e consequente seleção racial dos profissionais da música na Alemanha e eliminação dos géneros musicais considerados degenerados: música atonal, jazz, swing e toda a música composta por judeus.
Cartaz sobre a exposição Entartete Musik, inaugurada em 1938, em Dusseldorf (Fonte: https://www.dw.com/pt-br/jazz-e-outros-estilos-musicais-degenerados-foram-alvo-dos-nazistas/a-16843797)
O conceito de música degenerada (Entartete Musik) para os nazis, teorizado desde Richard Wagner, passando por Hans Joachim Moser e Arfred Rosenberg, tinha em Arnold Schoenberg o seu expoente máximo, por ser um compositor judeu e pela sua linguagem musical atonal (dodecafónica), e foi exibido na Exposição Entartete Musik, inaugurada em 1938, em Dusseldorf.
Que músicos foram, então, considerados degenerados pelos nazis? Mendelssohn e Mahler (judeus, embora praticassem um estilo de música “aceitável”); Ernest Krenek e Anton Webern (arianos, mas compositores atonais); Schoenberg e Kurt Weil (judeus e compositores de música atonal). Para além destes compositores, foram apresentados vários diretores de orquestra também considerados degenerados ou, pelo menos, incómodos: Bruno Walter, Fritz Busch, Arturo Toscanini ou Paul Hindemith.
Entre os grandes compositores superiormente considerados pelos nazis, figura, em primeiro lugar, o ídolo de Hilter, Richard Wagner («A paixão de Hitler por Wagner não conhecia limites. […] Na sua conceção, Wagner representada o supremo génio artístico, o modelo a ser copiado. Adolf sentia-se afetado emocionalmente pelos poderosos dramas musicais de Wagner, pela sua evocação de um passado distante de heroísmo e sublimemente místico da Alemanha. Lohengrin, a saga do misterioso cavaleiro em demanda do Graal, o epítome do cavaleiro teutónico, enviado do castelo de Momsalvat pelo pai, Parsival, para salvar Elsa, a donzela pura, injustamente condenada, que acabou por trair, foi a primeira ópera a que assistiu, tendo passado a ser a sua predileta.»[1]) mas também Anton Bruckner e Richard Strauss.
[1] KERSHAW, Ian – Hitler. Uma biografia. Lisboa: D. Quixote, 2009, p. 11. «Através dos Bechstein [fabricante de pianos], Hitler foi apresentado ao círculo de familiares de Wagner em Bayreuth. Durante a primeira visita, em outubro de 1923, ao santuário do que para ele era o herói supremo, […], ficou transfixo, tendo andado em bicos de pés por entre os bens que haviam pertencido a Richard Wagner, no salão de música e na biblioteca, “como se estivesse a admirar relíquias numa catedral”» (KERSHAW, 2009, 100). «”Quando ouço Wagner”, recordou o próprio Hitler […], “tenho a sensação de estar a ouvir ritmos de um mundo há muito desaparecido.” Era um mundo de mitos germânicos, um drama grandioso e um espetáculo prodigioso de deuses e heróis, de lutas titânicas e redenção, de vitória e de morte. Era um mundo em que os heróis eram intrusos que desafiavam a velha ordem, como Rienzi, Tannhäuser, Stolzing e Siegfried; ou salvadores castos como Lohengrin e Parsifal. Traição, sacrifício, redenção e mortes heróicas eram os temas wagnerianos que também preocupariam Hitler até ao Crepúsculo dos Deuses do seu regime em 1945. Era um mundo criado a partir de uma visão grandiosa por um artista de génio, um intruso e revolucionário, alguém que se recusava a fazer cedências e para quem a vida era uma questão de tudo ou nada, que desafiava a ordem existente, repudiando a necessidade de se curvar perante a ética burguesa de trabalhar para se ter um ganha-pão, superar a rejeição e a perseguição, suplantar a adversidade para se alcançar a grandeza. Não admira, pois, que o fantasista e mau aluno, o génio artístico rejeitado e ignorado que vivia num quarto esquálido na Stumpergasse, tenha encontrado o seu ídolo no mestre de Bayreuth. Hitler, o expoente da nulidade, da mediocridade, do fracasso, queria viver como um herói wagneriano. Queria tornar-se um novo Wagner – o rei filósofo, o génio, o artista supremo. Na crise de identidade, cada vez mais acentuada, de Hitler, depois de ter sido rejeitado pela Academia de Belas-Artes, Wagner era para Hitler o gigante artístico que sonhara poder vir a ser, mas que sabia jamais conseguir emular, a incarnação do triunfo da estética e da supremacia da arte». (KERSHAW, 2009, 18-19)
E que papel teve a música no Holocausto? Porque é que a música, que tem o condão de nos encantar e dispor bem, é também um eficientíssimo instrumento de propaganda, de manipulação das massas e de humilhação humana? Como é que a música consegue definir identidades, mas também anulá-las, sendo capaz de criar elos entre os homens quer para o bem quer para o mal? Que trechos musicais eram pedidos às orquestras dos campos de extermínios pelos oficiais nazis? Com que intuitos? Como se sentiam todos aqueles homens e mulheres obrigados a tocar perante a morte? Porque escreveu Primo Levi que a última coisa que se esqueceria do Lager (campo de concentração) era a sua voz? Como batem dentro de nós os tons mais escuros dos violinos de Paul Célan?
Nos campos, a música tanto podia ser iniciada clandestinamente pelos prisioneiros para se abstraírem da terrível realidade quotidiana como também era permanentemente usada como instrumento de dominação e humilhação por parte das autoridades nazis, por exemplo, através do canto. As SS obrigavam os prisioneiros a cantar em diversos contextos: em coro, na praça das chamadas, durante horas, nas marchas para e dos kommandos de trabalho, durante as chamadas, obrigando alguns prisioneiros a cantar individualmente para os humilhar. O único objetivo era submeter totalmente os prisioneiros à vontade dos guardas e qualquer desobediência era severamente punida. A música forçada e as artes forçadas tinham também, como já se referiu, uma função de propaganda. Atente-se na mentira que foi Terezín, tema que será desenvolvido numa das exposições ou neste simples exemplo: em Sachsenhausen, o comandante do campo apercebeu-se que o coro dos prisioneiros podia ser percecionado pelas comunidades vizinhas, aos domingos de manhã, e usava este meio para mostrar que, ao contrário do que diziam os opositores ao regime, a vida no campo não podia ser assim tão dura[1].
No discurso que proferiu perante o Parlamento alemão, em 2018, na evocação do Dia Internacional em Memória das Vítimas do Holocausto, Anita Lasker-Wallfisch (uma das sobreviventes da Orquestra Feminina de Auschwitz) relatou, ainda, que «Para muitos, a música [naquele] inferno foi um insulto absoluto. Já para outros, talvez, tenha sido a possibilidade, pelo menos por um momento, de sonhar com outro mundo.»[2] Primo Levi descreve, no seu Se isto é um Homem, como a música revelava a presença da morte nos prisioneiros que se mantinham vivos - «Quando esta música toca, sabemos que os nossos companheiros, lá fora por entre o nevoeiro, partem em marcha como autómatos; as suas almas estão mortas e a música empurra-os, como o vento empurra as folhas secas, e substitui-se à sua vontade»[3].
[1] https://www.voixetouffees.org/assets/expofrancais3.pdf
[2] http://conversa2.blogspot.pt/2018/02/esta-mulher-anita-lasker-wallfisch.html
[3] LEVI, Primo – Se isto é um Homem. Porto: Público (Coleção Mil Folhas), 2002, p. 52.
Qual o papel da música num campo de extermínio, em síntese, tendo por base as experiências das orquestras masculinas e feminina de Auschwitz e as funções:
- Função técnica, de coordenação ou cadência, ao inexorável ritmo da música, das marchas de trabalho daqueles que saíam ou entravam no campo, cinco a cinco, o que facilitava as contagens. Independentemente dos seus estados físicos e anímicos, da exaustão e da apatia, a música impunha-se substituindo-se às suas vontades como escreveu Primo Levi, transformando-se em tortura.
- Função de entretenimento dos nazis, constituindo-se como juke-box vivas, em cerimónias oficiais, como visitas ou inspeções importantes ou em cerimónias privadas para os oficiais e guardas do campo, que necessitavam de relaxar entre as seleções e os gaseamentos, ou mesmo para os Kapos, os sádicos prisioneiros chefes dos blocos.
- Função de perpetuação da mentira, tocando músicas tradicionais dos países dos recém-chegados prisioneiros junto à rampa da seleção para dar uma ilusão de normais «boas vindas» ou tocando, junto das câmaras de gás, músicas hebraicas para acalmar as pessoas que dali a pouco seriam transformadas em cinzas (um dos principais motivos de culpabilização e depressão dos músicos sobreviventes destas orquestras) [não se comprovou esta função no estudo da Orquestra Feminina de Auschwitz].
- Função de espetáculo do horror ou da morte – estas orquestras eram, também, usadas para acompanhar, com música de fundo, punições ou execuções públicas, numa demonstração do poder ilimitado das SS. Nas palavras do trompetista Herman Sachnowitz: «Nós também tocávamos noutras ocasiões, especialmente durante as execuções, que ocorriam por norma aos domingos à tarde ou à noite […] Talvez quisessem assim derrubar de vez os últimos protestos ou pragas finais com música. Um espetáculo grotesco decidido por ordens superiores. E os SS a rodearem-nos com armas carregadas»[1].
Termina-se esta introdução com o testemunho de Elie Wiesel:
«Refleti […] quando ouvi o som de um violino. O som de um violino num barracão escuro onde os mortos se empilhavam sobre os vivos. Quem seria o louco que tocava violino aqui, à beira do próprio túmulo? Ou será que não passava de uma alucinação?
Só podia ser Juliek.
Tocava um fragmento de um concerto de Beethoven. Nunca tinha ouvido sons tão puros num tal silêncio.
Como é que ele se tinha conseguido libertar? Sair de debaixo do meu corpo sem que eu desse por isso?
A escuridão era total. Só ouvia aquele violino e era como se a alma de Juliek lhe servisse de arco. Ele tocava a sua vida. Toda a sua vida deslizava sobre as cordas. As suas esperanças perdidas. O seu passado calcinado, o seu futuro extinto. Tocava aquilo que nunca mais iria poder tocar.
Nunca esquecerei Juliek. Como é que poderia esquecer aquele concerto tocado para um público de moribundos e mortos? Ainda hoje, quando ouço essa peça de Beethoven, os meus olhos fecham-se e, na escuridão, surge o rosto pálido e triste do meu camarada polaco, despedindo-se, através do violino, de um auditório de moribundos.
Não sei quanto tempo é que ele tocou. O sono venceu-me. Quando acordei, com a claridade do dia, avistei Juliek, na minha frente, encolhido sobre si mesmo, morto. Perto dele jazia o seu violino, pisado, esmagado, pequeno cadáver insólito e pungente.»
Elie Wiesel, A Noite. Texto Editores, 2012.
Texto e adaptação de Sandra Costa (docente responsável pelo Projeto).
[1] http://holocaustmusic.ort.org/places/camps/death-camps/auschwitz/camp-orchestras/
Bibliografia:
CALADO, Jorge – «Políticas degeneradas». In: Expresso, Edição n.º 2168, 17 de maio de 2014, Caderno Atual: 13.
CELAN, Paul – Sete Rosas mais tarde: Antologia Poética (sel., trad. e introd. de João Barrento e Y. K. Centeno), Lisboa, Edições Cotovia, 1996.
KERSHAW, Ian – Hitler. Uma biografia. Lisboa: D. Quixote, 2009
LEVI, Primo – Se isto é um Homem. Porto: Público (Coleção Mil Folhas), 2002.
WIESEL, Elie – A Noite. Texto Editores, 2012.
Webgrafia:
http://conversa2.blogspot.pt/2018/02/esta-mulher-anita-lasker-wallfisch.html
http://holocaustmusic.ort.org/places/camps/death-camps/auschwitz/camp-orchestras/
http://www.od43.com/Reichskulturkammer_ID_1937.html
https://elcultural.com/nazismo-y-arte-la-cultura-como-arma
https://www.biblio.com/book/foundations-nineteenth-century-chamberlain-houston-stewart/d/752457760
https://www.voixetouffees.org/assets/expofrancais3.pdf